O ano do Vapo
Esportes
Publicado em 26/02/2021
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Das raízes em Nova Iguaçu ao estrelato, conheça a trajetória de Gerson, que, aos 23 anos, se consagra como referência dentro e fora de campo no Flamengo
Gerson título brasileiro Flamengo
O Flamengo vai para o intervalo perdendo por 2 a 0 para o Atlético-GO, pela segunda rodada do Brasileirão, numa atuação totalmente fora do esperado. O então técnico rubro-negro, Domènec Torrent, tenta cobrar uma reação dos jogadores, mas a voz de um jovem jogador se levanta:
- Dome, você precisa falar o que eu tenho que fazer. Se não, não tenho como te ajudar. Você tem que passar orientação. Nós somos um time que sabe jogar, mas precisamos de um treinador que saiba passar informações.
No meio de jogadores mais velhos, todos com anos de experiência e títulos, a voz era de Gerson. Aos 23 anos, em sua segunda temporada pelo Flamengo, a primeira completa, o volante tornou-se uma das vozes ativas do vestiário, angariando um novo tipo de liderança no elenco, não só por atitudes como a citada mas também pelo futebol apresentado.
Converse com 10 pessoas que vivem o dia a dia do futebol do Flamengo, e 11 delas irão apontar Gerson como o melhor de sua posição no Brasil. Dentro e fora do clube, muitos vão além e o consideram o melhor jogador do país na temporada recém-encerrada. Numa campanha turbulenta no Brasileiro, que terminou em título mas teve momentos de dúvidas, o volante foi a garantia de consistência rubro-negra. Foi quem mais atuou pela equipe na competição, com 2.998 minutos.
Gerson vibra com a camisa do Flamengo - André Mourão / Foto FC
Dentro de campo fez quase tudo: foi primeiro volante, meia avançado, atuou nas pontas esquerda e direita... Com Rogério Ceni e o ajuste final no time, passou a ter ainda mais responsabilidade no meio, dividindo as tarefas defensivas com Diego.
Os números de Gerson no Brasileirão pelo Espião Estatístico:
34 jogos (1º no Flamengo) (23º no campeonato)
2998 minutos (1º no Flamengo) (36º no campeonato)
1 gol (10º no Flamengo) (177º no campeonato)
3 assistências para gol (5º no Flamengo) (45º no campeonato)
43 finalizações (7º no Flamengo) (44º no campeonato)
35 assistências para finalização (6º no Flamengo) (36º no campeonato)
7 amarelos recebidos (3º maior no Flamengo) (18º no campeonato)
15 amarelos para adversários por faltas nele (1º no Flamengo) (1º no campeonato empatado com Marinho, do Santos)
O técnico do Flamengo, aliás, é um dos maiores fãs do jogador. Assim que chegou, Ceni teve uma conversa importante com o volante, que admitiu imaginar o novo treinador como alguém mais introspectivo, mas se surpreendeu com sua postura mais aberta. A partir dali, a relação se solidificou.
Foi entre os mais jovens do elenco rubro-negro que Gerson encontrou, de fato, seu nicho. Os garotos que subiram tratam o jogador como uma das principais referências. Próximo de nomes como Pepê e Thuler, o volante costuma ficar ao lado dos mais novos durante as refeições e tenta passar experiência e tranquilidade a eles.
Esta postura de Gerson como líder desabrochou depois da goleada sofrida pelo Flamengo para o Independiente del Valle por 5 a 0, em setembro, pela Libertadores. A sequência imediamente posterior, com a maioria do elenco pegando Covid-19 até o empate com o Palmeiras por 1 a 1 - jogo em que o time rubro-negro estava repleto de garotos -, consolidou o novo status do volante.
Ao lado de outros líderes do elenco, ele passou a ser consultado também em diversas tomadas de decisão no dia a dia do futebol rubro-negro ao longo da temporada.
Gerson durante treino do Flamengo no Ninho - Alexandre Vidal/Flamengo
O CASO RAMÍREZ
Não foi à toa que, quando Gerson acusou o meia Indio Ramírez, do Bahia, de injúria racial, o apoio dos companheiros foi imediato. O episódio, ocorrido em 20 de dezembro, fez o meia do Flamengo ir a público relatar o que disse ser o primeiro ato de racismo que sofreu. Em post no Instagram logo após a partida, o jogador rubro-negro relatou seu engajamento na luta antirracista.
- É nojento conviver com o racismo e ainda mais com os que minimizam esse crime. Não vou "calar a minha boca". A minha luta, a luta dos negros, não vai parar.
O caso ainda corre na Polícia Civil, que indiciou Ramírez. No Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), porém, o inquérito foi arquivado, depois de Gerson não prestar depoimento. O Flamengo alegou que a data marcada não era possível, por se tratar de véspera de um clássico contra o Vasco. Mesmo contrariado, o volante aceitou a posição do clube.
O episódio, porém, reforçou convicções dentro da família de Gerson. O jogador é nascido em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e, como muitos jogadores de futebol, encarou enormes dificuldades até alcançar o objetivo de se profissionalizar.
Torcedor do Flamengo, o menino chegou a jogar no futsal do clube, ainda criança, mas precisou sair porque não tinha condições financeiras de bancar as idas à Gávea. O obstáculo arrefeceu o sonho.
- Uma vez, quando ele já estava no Fluminense, com 16 para 17 anos, nós passamos em frente à Gávea, e ele falou: pai, eu não sei quando, mas ainda vou jogar aqui. Não esqueço disso. A história do Gerson era para ele jogar no Flamengo. Estava escrito – conta Marcos Santos, o Marcão, pai e empresário de Gerson.
Marcão comprou desde cedo o sonho do filho. Ao perceber o potencial, pautou sua vida para viabilizar a carreira de Gerson. No caminho passou por preconceito, mas escolheu ignorar. Na época, considerava não ter voz. Isso mudou.
- Infelizmente, essa situação é muito delicada. Não é de agora. É de muito, muito tempo. Desde os nossos ancestrais. Muitas vezes aconteceram e muitas vezes a gente deixou a bola seguir, porque a gente não tinha voz. Hoje, não. Hoje temos voz. Eu sei que muitos dizem que não vai dar em nada, mas um dia vai ter que dar em alguma coisa. Hoje nós temos as palavras.
Gerson, ainda criança, em Nova Iguaçu - Arquivo pessoal
O sonho de atuar profissionalmente começou em um dos maiores rivais do Flamengo. Tratado como joia no Fluminense, Gerson disputou uma temporada, a de 2015, no time principal antes de ser vendido à Roma. O jogador, porém, jamais caiu nas graças dos torcedores tricolores, apesar de algumas boas partidas. Entre os mais críticos, a palavra mais frequente era "preguiçoso", pela postura pouco participativa em campo.
Em julho de 2019, quando Gerson chegou ao Flamengo após passagem sem brilho por Roma e Fiorentina, muitos torcedores rubro-negros desconfiaram da contratação. Mas desde o início o jogador mostrou um estilo de jogo totalmente diferente dos tempos de Fluminense. Em todos as partes do campo, com poder de marcação e criação, foi decisivo para o segundo semestre mágico de 2019 e conseguiu ter ainda mais importância na temporada 2020.
- Não só hoje em dia, desde muito tempo atrás, a maioria de jogadores com quem conversei tinha o sonho de jogar no Flamengo. É um grande clube, no Rio de Janeiro, a maior torcida, ver o Maracanã com 70 mil pessoas, todo mundo quer sentir esse gostinho de estar lá dentro vestindo a camisa do Mengão - diz o jogador.
RAIZ EM NOVA IGUAÇU
Depois do sucesso, a forma que Gerson e sua família encontraram para combater as dificuldades foi investir de volta no lugar onde cresceram. O volante ajuda mensalmente famílias carentes em Nova Iguaçu com cestas básicas. Desde que assinou seu primeiro contrato profissional, ainda pelo Fluminense, passou a entregar alimentos e brinquedos na cidade em todos os finais de anos.
Marcão e Gerson ainda são presença constante em Nova Iguaçu. O pai, por exemplo, costuma dar palestras na cidade. A última ação foi inaugurar duas franquias da “Loja do Vapo”, nos bairros da Cerâmica e de Morro Agudo, com produtos licenciados do jogador.
- Sempre pensei que, quando Deus me abençoasse, eu tinha que fazer um investimento na cidade, levar uma arrecadação, para fazer uma situação melhor. Temos que ajudar o nosso povo. Eu saí de uma situação em que muitos me chamavam de maluco. “Ah, esse louco vive andando com esse menino para lá e para cá”. Hoje, quando passo, o pessoal tira o chapéu para mim. Tem que tirar da cabeça esse negócio de que só filho de rico consegue as coisas. Nós também podemos – diz Marcão.
A loja do Vapo, que virou marca registrada de Gerson - Arquivo pessoal
E A SELEÇÃO?
Um objetivo que ainda falta para Gerson conseguir é a Seleção. Dentro do Flamengo, o tom é de espanto quando se toca no assunto sobre a ausência de convocações do jogador, que tem histórico em seleções de base.
O Gerson de hoje é resultado de um processo que começou lá atrás. Algo que nem sempre foi bem compreendido.
Um exemplo claro é o seu corte no Sul-Americano sub-17 de 2015. Na ocasião, o volante vivia às voltas com a doença de sua avó paterna, Ilda, que estava internada. Preocupado com a situação da avó e vendo que a comissão técnica precisava ainda cortar jogadores para a disputa do torneio, Gerson se antecipou e pediu para sair. Ilda morreu dias depois.
- Isso me deixa muito emocionado. Ele estava com a seleção sub-17 em Águas de Lindoia (São Paulo), e teve um sonho com a minha mãe. Pediu para ser cortado, disse que não estava com a cabeça boa. Muitos entenderam isso de forma diferente, acharam que ele estava de resenha, mas a gente sabe o que estava acontecendo – lembra Marcão.
Gerson foi logo em seguida cortado também do Mundial sub-20, e o episódio do sub-17 foi lembrado pelo então treinador, Alexandre Gallo. Foi o fim da passagem do meia nas seleções de base.
Gerson, o Coringa, na comemoração do título da Libertadores - Alexandre Vidal/Flamengo
Já no Flamengo, destaque absoluto em 2019, Gerson entrou no radar da seleção sub-23 para a disputa do Pré-Olímpico em janeiro de 2020.
Gustavo Leal, auxiliar do técnico André Jardine, entrou em contato com Marcão para saber das condições físicas do volante. Recebeu a resposta de que a temporada havia sido extremamente desgastante e que Gerson não havia tido pré-temporada. O jogador acabou não convocado.
Sem Gerson na seleção olímpica nem na principal, Tite é constantemente perguntado sobre a ausência do rubro-negro, mas é sempre evasivo.
- Não houve qualquer tipo de punição ao Gerson. Minha palavra que não teve nada disso. Sempre esteve no nosso acompanhamento. Existe uma concorrência na posição. Em alguma circunstância que se escolhe um e não leva o outro. Mas esse aspecto disciplinar não tem – disse Tite, em dezembro de 2020, no Seleção SporTV.
Em uma seleção Gerson está garantido: a do Campeonato Brasileiro. Ele foi escolhido entre os melhores jogadores do torneio. Campeão e líder: o ano do Vapo foi o ano da ascensão de Gerson no Flamengo.
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Por Felipe Schmidt – Rio de Janeiro
*Redação: blogjrnews.com