Após colherem o triplo de grãos dos guaranazeiros, eles começam a escolher pra quem vender, aumentam a renda e enviam os filhos para estudar fora
O casco de uma tartaruga foi colocado no centro da mesa. Dentro dele, uma farofa com a carne do animal. Eu estava na casa de Itanildes Vieira, presidente da Associação de Produtores Agroextrativistas da Floresta Estadual de Maués (Aspafemp). Dentro da Floresta comer bicho de casco é autorizado pela legislação federal. Na cidade, poderíamos parar em uma delegacia. Ao meu lado, cinco membros da família ribeirinha comentam o sabor do sarapatel - a três gerações eles plantam, colhem e vendem o fruto do guaraná na beira do Rio Parauari - distante 650 quilômetros de Manaus. Deixamos de ter sinal de rede no celular após quinze minutos de lancha, saindo do porto de Maués. Viajamos até Vila Darcy para entender como os ribeirinhos triplicaram a produção sustentável do fruto, abalando o mercado internacional de preços e criando uma corrida contra o tempo na indústria mundial de refrigerantes.
Sucesso dos produtores que moram dentro de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), está intimamente ligado a combinação dos seguintes ingredientes: tecnologia, gestão financeira, coletividade e investimento, muito investimento. E um pouco de remédio natural. A homeopatia aplicada pelos agricultores nos guaranazeiros conseguiu eliminar as paradoxais formigasTachi e Taracuá, sem eliminá-las literalmente. Elas costumam atacar os agricultores na hora da poda ou da colheita, ao mesmo tempo que afastam o Trips, principal praga que atinge as plantações. Desde 2017 a aplicação do repelente - uma ideia bolada pela Coca-Cola Brasil - fez aumentar em 137% a quantidade de frutos recolhidos de um só pé. “Antes colhia 130 gramas de um desses aqui”, diz o produtor Erivan Costa, apontando para o guaranazeiro,“hoje saio com 4 a 5 quilos”, exclama. A companhia atua com assistência técnica juntos aos produtores desde 2016.
Domesticado pelos índios Sateré Mawé, atualmente o ‘Wará’ alimenta e gera renda para 487 famílias que trabalham cultivando o fruto em mais de 990 plantações no município de Maués, segundo o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam). O município perde para Presidente Figueiredo como maior produtor do Amazonas. Ambos alternam na liderança. Na safra do último ano a diferença foi de duas toneladas.
Eu e o fotógrafo Junio Matos fomos recebidos pela família ribeirinha que nos esperava para o jantar. Provei a farofa de tartaruga e senti gosto, inesperadamente, de carne de panela, enquanto um gerador de energia movido a diesel alimentava a lâmpada acima da mesa. De 18 a 22hrs é possível ouví-lo, enquanto a comunidade não conta com o serviço de fornecimento de energia elétrica full time. Na sala, as crianças assistem ao jornal da noite em uma televisão de 42 polegadas.
Nas alturas
Com o aumento da produção, a família de Itanildes abriu um comércio em um ‘puxadinho’ de três metros quadrados construído ao lado da casa. Ela o abastece de produtos de higiene, beleza e alimentos com mais frequência desde o salto da quantidade de frutos recolhidos. Pergunto a um dos filhos se tem bolacha recheada pra vender e ouço um prolongado ‘sim’. “Tem de morango, chocolate e até leite condensado”, diz, sorrindo. Cenário positivo para os negócios faz disparar a qualidade de vida na comunidade de mais de 100 habitantes, divididos em aproximadamente 30 famílias.
Em 2019 o preço do quilo do guaraná foi valorizado em 34%. As duas maiores indústrias compradoras optam por negociar diretamente com os agricultores. Atravessadores, personagens que voam abaixo do radar da fiscalização do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastacimento (Mapa), perderam o protagonismo de ditar preços de compra e logística. “Eles nos ofereciam R$ 20 pelo quilo, foi pra R$ 18, desceu pra R$ 12 e agora foi pra R$ 8”. Conta Manuel Barbosa, que lembra: “eles nos roubavam, e nós não podíamos fazer nada”.
Atualmente, os produtores de Vila Darcy vendem mais de 90% do fruto para a Coca-Cola Brasil (CCBR). De 2016 a 2018 a gigante dos refrigerantes aumentou em 68% a compra dos agricultores de base familiar. Os dados foram divulgados no relatório de sustentabilidade da empresa.
A partir do cultivo sustentável e aumento na quantidade de grãos colhidos, produtores começam a escolher pra quem vender, aumentam a renda e enviam os filhos para estudar fora.
“Mandei dois [filhos] para estudar fora, em Maués e Manaus, depois que consegui aumentar a renda com a venda do guaraná”, conta Eli Barbosa, que só nos últimos dois anos recolheu o dobro de grãos que esperava para o período. Boa parte dos habitantes de Vila Darcy possuem televisão, geladeira e investem em novas áreas de renda, apesar do pouco número de programas do governo federal, como o 'Luz Para Todos'.
Selvagem, mas frágil
Na primeira noite dormimos em um barco ancorado em frente a casa de Itanildes. Em tempos de seca do rio - que termina agora, em novembro - os guaranazeiros que visitei pela manhã estão no período final de amadurecimento. Em espaços abertos ele assume a forma de um arbusto com dois a três metros de altura. As folhas são compostas por cinco ramos, de um verde intenso. Brancas ou de cor amarelo-clara, as flores são agrupadas ao longo do caule. Os frutos crescem em cachos de coloração avermelhada ou amarela. Quando maduro, o fruto exibe sementes negras com uma camada branca e espessa, que lembram pequenos olhos.
No quintal da Vila Darcy as plantações ocupam uma área equivalente a dois campos de futebol. Com o clima aberto, o tempo de chegada até elas pode variar em até 40 minutos. Naquele dia chegamos no primeiro em 28 minutos, alternando o trajeto entre lancha e caminhada floresta à dentro. “São quatro hectares de guaranazeiros em cada plantação”, conta o produtor Eli dos Santos, que explica: “Ela não pode ser muito grande porque ele [o guaraná] é selvagem, mas é frágil. É preciso redobrar o cuidado pra ele não morrer antes do tempo, ou ser atacado por pragas”, diz.
Eles aplicam a homeopatia desde o último ano, e perceberam os efeitos imediatos da solução contra as pragas e os insetos, na quantidade de frutos recolhidos. “O guaranazeiro é difícil de trabalhar, e olha que ja trabalhei no garimpo. Meus tios também trabalhavam, mas cuidar de um pé de guaraná é puxado”, conta Josias Matias ao tomar posição para uma fotografia junto a um dos pés.
“O guaraná contém mais cafeína que o próprio café”, conta o engenheiro agrônomo João Carlos, enquanto testa o sabor de uma das sementes. O teor de cafeína em uma delas pode variar de 2,0 a 5,0%. Já o café possui de 1% a 2%. Na caminhada de volta à margem, chegamos com uma diferença de seis minutos a menos em relação ao tempo de ida, com o João Carlos sempre à frente.
Rede invisível
Carlos é especialista em agricultura da Coca-Cola Brasil no Amazonas e atua diretamente com as famílias produtores de guaraná de Vila Darcy. De acordo com o agrônomo, o processo de rastreabilidade do guaraná implementado pela companhia ainda em 2016, garante que o fruto está sendo produzido e vendido no estado. A agricultura familiar de 12 municípios amazonenses se tornou responsável por quase metade do fornecimento de guaraná para a produção da Coca - Cola Brasil, em 2018.
Segundo ele, o sistema de rastreabilidade vai além de mapear e monitorar a cadeia produtiva. "O sistema também incentiva a agricultura familiar e a produção com foco no manejo sustentável do fruto na região. Isso porque a rastreabilidade é feita em toda a cadeia e conta com a participação dos produtores", afirma o agrônomo que complementa: "há três anos o Imaflora [ Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola ] valida a rastreabilidade do guaraná garantido que o produto que usamos é 100% proveniente do Amazonas. A rastreabilidade gera oportunidades para os produtores e a companhia, mas principalmente empodera produtores, cooperativas e as associações que atuam nesse processo”, explica João Carlos.
Em 2020 cerca de 50% dos refrigerantes de guaraná consumidos no mundo virão de uma plantação de base familiar. “O conhecimento popular dos agricultores sobre as técnicas de manejo aliado a aplicação das tecnologias sustentáveis nas plantações de guaraná, é a largada de um boom econômico. Serve como alerta para o mercado que subestima a força dos ribeirinhos", projeta Vitor Silveira, economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Terça-feira passada (22) os produtores da Vila Darcy inauguraram um poço de água potável movido a energia solar. O pagamento mensal do custo de manutenção é de R$ 8 ao mês, por família.
*O repórter viajou à convite do Instituto Coca-Cola Brasil
Foto: Junio Matos
Por: Cley Medeiros/A crítica
*Redação: blogjrnews.com