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Cem anos do rádio no Brasil: as transformações do radiojornalismo
Brasil - Internacional
Publicado em 17/08/2022

Grandes mudanças ocorreram a partir dos anos 80

 

Notícias 24 horas pelo rádio. All news, talk news, news plus. Migração da AM para a FM. Da antena para a internet. Rádio on demand. Em novos formatos e plataformas. O radiojornalismo e, de forma ainda mais ampla, o jornalismo sonoro, passou por grandes transformações a partir dos anos 1980. E, de um meio de comunicação que já foi considerado moribundo, o rádio passou a abraçar o grande potencial para a produção jornalística que sempre esteve lá.

 

Uma rádio para o jornalismo

Foi no período de redemocratização do Brasil que se concretizou a próxima grande etapa de experiências bem-sucedidas no jornalismo de rádio: as emissoras dedicadas exclusivamente à notícia.

 

A novidade seguia a tendência de segmentação das rádios e corria atrás de um modelo de negócio que os Estados Unidos já tinham consolidado décadas antes. Era o chamado “all news” e suas variações – formato surgido em Tijuana, no México, e popularizado nos EUA ainda na década de 1960.

 

O modelo mexicano consistia em ciclos de notícias repetidas e atualizadas de tempos em tempos, partindo da premissa que o ouvinte ligaria na emissora, se informaria de forma satisfatória e seguiria para outra frequência de sua preferência, abraçando, assim, a ideia de que a audiência se renova periodicamente.

 

Nos Estados Unidos, outros modelos foram explorados com sucesso. All talk, que eram rádios conversadas e com participação intensa do ouvinte; talk news, a mistura das duas, com formatos que iam de noticiários a programas de entrevista e opinião; ou o news plus, que é a já conhecida fórmula brasileira música-esporte-notícia.

 

Em terras brasileiras, o projeto mais famoso e um dos pioneiros na área é o da Central Brasileira de Notícias (CBN), criado em 1991. Cabe destacar que, segundo um dos principais pesquisadores do rádio no Brasil, Luiz Artur Ferraretto, ela não foi a primeira emissora do tipo no país.

 

“No Brasil, a primeira emissora a se dizer all news, mas que de fato nunca fez jornalismo 24 horas, foi a rádio Jornal do Brasil, que tenta fazer isso de 1980 até 1986. (A rádio Jornal do Brasil) tem uma certa importância no Rio de Janeiro, mas enfrenta uma série de dificuldades. Quem vai conseguir fazer isso pela primeira vez com sustentabilidade é a Rádio Gaúcha, de Porto Alegre, que já se assume como talk news ao longo dos anos 1980. Ela consegue consolidar o formato em 1986, mas começa a investir nisso em 1983”.

 

Ele afirma que encontrou evidências – inclusive de visitas de integrantes do Grupo Globo à Gaúcha na época que a CBN ainda era gestada. “Há reportagem na Revista Imprensa identificando isso. Os observadores queriam ver como o modelo era adotado na Rádio Gaúcha. E, como repórter da emissora na época, eu presenciei isso”.

 

A CBN, no entanto, permanece como a primeira experiência exitosa nacional no ramo. Hoje, a rádio do Grupo Globo está presente em 86 cidades brasileiras, com quatro emissoras próprias e 38 afiliadas.

 

O jornalista Heródoto Barbeiro, que participou da criação do projeto e atuou por muitos anos com um dos principais âncoras da emissora, conta que a delimitação do público-alvo e o entendimento que a audiência da rádio é rotativa foram fundamentais para determinar o formato e o conteúdo da emissora.

 

“Foi descoberto que o público-alvo era principalmente o cara que está no carro de manhã. Então é para ele que a gente vai falar. Ele é de que camada da população? Geralmente A e B. Quanto tempo ele ouve o rádio? Ele liga e desliga em vários momentos. Então a repetição (de notícias) é boa, não é um mal”, detalha.

 

Barbeiro lembra qual era o principal desafio do projeto: “A grande preocupação era se tinha notícia suficiente para ficar 24 horas no ar. Mas a gente viu não só que tinha, como a gente não conseguia dar tudo”. Para alimentar a fome incessante da programação por notícias, era preciso ter atualização constante de conteúdo; para isso, investir em profissionais entre âncoras, repórteres e produtores, era fundamental.

 

 

Da AM para a FM

A CBN foi, também, a emissora totalmente dedicada ao jornalismo operando na faixa de frequência modulada - a FM. Desde que começou a funcionar, a FM, com maior qualidade sonora, foi direcionada principalmente para a música. Por décadas, o jornalismo, quando existente, era tímido, limitado a horários específicos. Em 1996, a entrada da CBN para a FM mudou o jogo.

 

A novidade veio não sem alguma resistência empresarial, como lembra Heródoto Barbeiro: “Eu sugeri que a CBN fosse colocada em um canal que o Grupo Globo tinha na FM, 90,5. Mas na época era um desafio grande, porque se entendia que AM era a rádio falada e a FM era a rádio musical. Eu insistia, dizendo que fora do Brasil as rádios (de notícia) eram FM. Depois de algum tempo de insistência, a CBN foi para a FM. E se tornou um sucesso comercial e de público”.

 

Atualmente há outras emissoras que atuam no mesmo segmento e que estão presentes na FM, como a BandNews, criada em 2005 e que também está presente nacionalmente. Uma de suas principais vozes era o jornalista Ricardo Boechat, morto precocemente em um acidente em fevereiro de 2019.

 

 

O rádio extrapola a antena

Como foi com a televisão, a internet e o celular também transformariam o modo como consumimos informação, como vivemos e nos reunimos – o que levou o rádio, novamente, a expandir seus horizontes e pensar modelos atualizados de sobrevivência. As novas tecnologias permitiram ao jornalismo sonoro extrapolar a antena, como diz a coordenadora da Rede de Pesquisa em Radiojornalismo e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Valci Zuculoto:

 

“É um meio que evidencia cada vez mais sentido de permanência, que tem adaptação resiliente e transborda para além da antena. Na antena temos o rádio AM, o constituidor da nossa radiofonia, migrando para o FM, e continua em reconstrução seus modelos comerciais, estatais e públicos. E principalmente se reinventa na web, com emissoras transmitindo sua programação pela internet ou com as rádios web exclusivas”.

 

Os custos de apuração e transmissão da notícia também diminuíram, como destaca Heródoto Barbeiro. “Fui muitas vezes fazer reportagem na rua, e você tinha que pedir uma linha telefônica e ir lá para o aparelho. Hoje você pode fazer do seu celular, do seu laptop. O custo técnico de emissão de som caiu vertiginosamente”.

 

Além da agilidade de cobertura conquistada pelo jornalismo em geral, a presença do rádio no meio virtual criou novas interações com o conteúdo. Jornais de emissoras de rádio passaram a ser exibidos no YouTube. Os programas das emissoras foram disponibilizados on demand, para que o público pudesse ouvir o programa quisesse e quando desejasse.

 

“Estou escrevendo um livro sobre os 150 anos do rádio, que vou lançar agora, e o primeiro capítulo fala do metaverso, que é a tecnologia mais avançada na internet. O rádio já está lá”, defende Barbeiro.

 

Recentemente, o rádio ganhou um “irmão”: é o podcast, um formato popular e que já tem no jornalismo um dos segmentos com mais potencial e criatividade. Grandes reportagens, com riqueza de narrativas e até mesmo áudio dramatização, são sucesso de público.

 

Ferraretto afirma que, infelizmente, as rádios vêm deixando passar a oportunidade usar o podcast ao seu favor. “O podcast se constituiu à parte do rádio, que não soube usar o podcast. O radiojornalismo deveria ser o breaking news, a notícia na hora em que ela acontece, e o podcast pode ser uma ferramenta de aprofundamento da notícia”, analisa.

 

 

Oásis no deserto

Se o rádio conseguiu expandir limites físicos e de plataforma para ganhar contornos globais, ele ainda assim não perdeu uma de suas principais características: a de ser o meio mais próximo do cidadão.

 

De acordo com o Atlas da Notícia, pesquisa que mapeia desertos de notícias (como são chamados municípios em que não há nenhum meio de comunicação com produção jornalística) e o jornalismo local no país, o rádio figurou como o meio de comunicação mais numeroso nos municípios brasileiros até a última edição, quando ele foi ultrapassado – por menos de 1% – pelo online.

 

Em 2021, eram quase cinco mil emissoras, o que corresponde a 33,5% do total de veículos com produção jornalística local. O rádio ainda está em primeiro no Centro-Oeste, no Sudeste e no Sul do país.

 

O coordenador do projeto, Sérgio Ludtke, afirma que esse número pode ser ainda maior. “Ainda estamos desbravando os municípios. E se a gente pudesse contabilizar rádios comunitárias que produzem jornalismo, provavelmente o rádio ainda seria o principal meio de comunicação que atende as audiências locais no país”.

 

Mesmo com tanta capilaridade do rádio e da expansão de meios online, o país está longe de se livrar dos desertos de notícia: 14% da população brasileira ainda vive sem acesso à produção local de informações, o que corresponde a 29 milhões de pessoas. Elas vivem em mais da metade dos municípios do país mais precisamente 53%.

 

Um dado ruim para o exercício da cidadania e para a democracia brasileira, segundo Ludtke: “O jornalismo é um pouco fiscal do poder. É importante que exista fiscalização das obras, do papel da prefeitura, do poder local, que se tragam diferentes visões sobre o que está acontecendo na cidade. Essa informação é importante para que as pessoas formem consciência e possam tomar decisões maduras, incluindo o voto. Isso faz com que o jornalismo local seja um pilar importante para a democracia”.

 

Para o pesquisador, a presença do jornalismo é ainda mais importante depois que as redes sociais se tornaram onipresentes na sociedade. “As redes sociais propiciaram um trânsito de informações enorme, mas elas não são apuradas com técnicas jornalísticas, que possam ter rigor e seguir requisitos éticos. É um palco de muita informação falsa, também”.

 

Ainda que exista jornalismo local no município, no entanto, não há garantia de informação plural. É o que lembra Luiz Artur Ferraretto. “No interior do Brasil há uma realidade que nunca se alterou, que é a do coronelismo eletrônico. O dono da emissora ter relação com a política e usar a emissora para atender seus interesses. E uma outorga pública deveria ser concedida pelo Estado em nome da sociedade. Ela é pública, independente de ser comercial ou não”.

 

Os quase desertos de notícias, onde há um ou dois veículos, correspondem a 26% dos municípios. Situação em que a pluralidade tem menos chance de estar presente. “Não é que a gente garanta que vai ter um número maior de veículos independentes, mas é mais esperado que, em um ambiente com mais diversidade, na equiparação desses veículos a gente pode ter visões diferentes”, explica Sérgio Ludtke.

 

Viabilidade financeira

A sustentabilidade e a independência dos meios de comunicação local são, para o coordenador do Atlas da Notícia, o grande desafio. “Um veículo local independente é um empreendimento heroico. É muito difícil. A gente tem cada vez menos recursos vindos de publicidade. A publicidade em pequenas cidades é mais rara. É mais difícil que esses veículos tenham assinantes, e os veículos abertos, como emissoras de rádio, são muito dependentes de publicidade. E a publicidade nessas cidades vêm sobretudo do poder público local”.

 

A professora Valci Zuculoto também elege a sustentabilidade financeira como a principal demanda a ser resolvida pelas rádios. “Nosso cenário de jornalismo sonoro é muito amplo e tem muitas possibilidades. Só falta a gente conseguir fazer com que essas emissoras possam sobreviver”.

 

Em comemoração aos cem anos do rádio no Brasil, completados em 7 de setembro de 2022, a Agência Brasil publica uma série de reportagens sobre as principais curiosidades históricas do rádio brasileiro. Veja as matérias já publicadas:

 

O centenário do rádio no país também será celebrado com ações multiplataforma em outros veículos da EBC, como a Radioagência Nacional e a Rádio MEC que transmitirá, diariamente, interprogramas com entrevistas e pesquisas de acervo para abordar diversos aspectos históricos relacionados ao veículo. A ideia é resgatar personalidades, programas e emissoras marcantes presentes na memória afetiva dos ouvintes.

 

Edição: Nathália Mendes

 

Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil

Por Sumaia Villela - Repórter da Agência Brasil - Brasília

*Redação: blogjrnews.com

 

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